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Como não ser cínico em 2020


Reuber Brandão

Eu sou biólogo a 48 anos, diplomado a meio quarto de século. Meu doutorado já atingiu a maioridade. Desde que me lembro como gente, lembro de um bicho na minha mão. Até naquela foto clássica da família reunida, estou ali, num canto, olhando para um besouro caminhado nos dedos, ao invés de olhar para a câmera e imitar os sorrisos.

Fazia coleções de insetos e inventava minhas expedições de campo. Colocava laranjas na mochila da escola (na época a moda eram as mochilas emborrachadas) e sumia nos traços de cerrado que ainda permeavam a paisagem de Brasília. Passava horas caminhando na mata do Guará (hoje Parque Ecológico Ezequias Heringer), no Córrego Sobradinho (onde hoje existe o parque dos jequitibás) ou nas margens do lago Paranoá, perto da ponte com nome de general. Meus matos preferidos acompanhavam minhas mudanças pela cidade.

Inventava nome para os meus animais prediletos e consumia avidamente os poucos livros disponíveis sobre zoologia para crianças que haviam. Fascículos vendidos nas bancas de revistas. O Mundo dos Animais, O Reino Animal e até mesmo os cartões que acompanhavam o chocolate Surpresa. Decorava os epítetos científicos e as parcas informações sobre a ecologia dos animais. Sempre dóia olhar para os desenhos e fotos das espécies em extinção, um nome feio, sujo, imoral, mas ainda muito longe de meus sentimentos de menino.

Com o tempo vieram as cachoeiras, as primeiras viagens, os acampamentos, o violão na fogueira a noite após um dia limpando a sujeira deixada pelos primatas que frequentavam locais como Mumunhas, Poço Azul, Topázio, nos arredores de Brasília.

Quando decidi fazer vestibular para biologia, os temores de minha mãe se consubstancializaram. Na melhor das hipóteses seria um professor secundarista de biologia. No entanto, meus sonhos e meus amigos me levaram a uma boa universidade pública, a bons professores e a almejar uma carreira de pesquisa. Foi uma escolha feita com muito amor e nenhum juízo. Amava a natureza, os animais e isso me bastava.

Com o tempo fui me especializando no estudo de répteis e anfíbios, duas das minhas paixões de menino. Tinha que garantir meu ganha-pão e a principal fonte de trabalho estava nos estudos de impacto ambiental. Assisti, em assento exclusivo, ao desaparecimento do Cerrado do Distrito Federal. Vi a planura e o horizonte sem fim do Oeste da Bahia ser rapidamente substituído por monoculturas. Acabei indo monitorar o impacto da formação do lago de Serra da Mesa sobre a herpetofauna e participando dos estudos preliminares do barramento de Lageado, no Tocantins. Assistia a fauna afogada, atropelada, esmagada, eliminada. Aquela palavra que tanto me ofendia na juventude, extinção, passou a fazer parte do meu vocabulário diário.

Foram anos e anos aprendendo a realidade com a qual profissionais do meio ambiente lidam. Estudos de impacto ambiental? Soava como mero ritual. Resgate de fauna? Caro espetáculo de resultados marginais. Conservação? Retórica presente apenas nos estudos acadêmicos. Eu era um paradoxo. Meu trabalho era necessário apenas porque a natureza estava sendo substituída pelas paisagens do antropoceno. Eu era um profissional do fim-do-mundo. Quanto mais natureza era perdida, mais emprego havia.

Claro que também havia os momentos de alegria, como os estudos de planos de manejo de unidades de conservação, os inventários biológicos, os experimentos de campo, os aprendizados com professores, com os amigos e com os parceiros. No entanto, mesmo assim, algo me corroía a alma, dissolvia minha confiança, esmaecia minha esperança em um mundo mais vivo.

Lembro quando comprei uma arma. A descrença que vivia em minha alma me dizia que a única coisa que ainda iria restar no futuro seriam as informações biológicas depositadas em coleções científicas e/ou em museus de história natural. Que tudo seria perdido mesmo, sem que fossem minimamente conhecidas, estudadas e compreendidas. Perdidas para os reservatórios de hidrelétricas, para as esteiras dos tratores, para o asfalto e cimento das novas cidades, para o chumbo dos caçadores. Eu queria matar animais para fazê-los eternos em coleções científicas.

Com a arma na mão, algo ruim em mim se tornava pior. Eu estava completamente tomado pelo cinismo e pela descrença na humanidade. Pensava comigo que era melhor que tudo fosse mesmo destruído, porque só assim a sociedade pagaria pela sua irracionalidade no trato com a natureza. Eu estava querendo ver o oco. Eu havia lavado as mãos. Havia me convencido de que eu não sentiria mais nada.

Um dia, arma apontada para um araçari, sangue nos olhos, observei um menino sem camisa e descalço me observando. Engoli em seco.

Percebi que o sofrimento moral e afetivo que a destruição da natureza me causava havia solapado minha identidade, haviam me reduzido a menos de mim, estavam me tornando um inútil, apartado de mim, apartado do mundo, apartado da realidade.

O cinismo é uma válvula de escape poderosa, muito usada por vários de nós. Apesar de algumas vezes nos ajudar a lidar com um mundo muitas vezes patético, cria pessoas à parte da história. O cínico não muda os rumos dos fatos, não contribui com o contexto. O cínico é um covarde moral. Comprei uma arma por covardia. Criei uma desculpa distorcida, partindo da real necessidade de termos material científico tombado em coleções científicas e museus, para justificar minha recusa moral.

Eu estava cansado de sofrer pela ignorância das pessoas em relação ao valor da natureza. Eu queria, de alguma forma, que elas sofressem com minha dor. Eu rosnava, acuado por sombras assustadoras. Lavar as mãos, dizer danem-se todos, era para mim, a coisa certa a se fazer. Mas o cinismo que havia me contaminado não me deixava feliz, não acalmava meu coração, não contribuía com nada de positivo. Era apenas cinismo. Queria uma arma por ser covarde.

Nesses momentos, a verdade nos cai como um balde de água gelada. Arrepia. Percebi que os dois caminhos que eu imaginava existirem, ou seja, sofrer pela destruição do mundo natural que grassa o mundo ou me tornar um cínico amargo, não eram as únicas opções. Hoje, sigo um outro caminho. Reconheço minha insignificância, as minhas limitações pessoais, mas sei que ainda posso alcançar as pessoas mais próximas e, dentro de minhas possibilidades, tentar fazer alguma mudança, mas sem me exasperar caso as pessoas simplesmente decidirem seguir outro rumo. Sou um produto do tempo histórico no qual nasci e minha capacidade de mudar a história é limitada pelo entendimento de realidade que os outros que me cercam carregam. Lamento a ignorância, lamento a tristeza, lamento o futuro sombrio que teimosamente se ergue no horizonte, mas não serei mais cínico, não irei mais fingir. Lamento pela biodiversidade pulverizada, pela perda da vida no planeta, mas o meu lamento não irá me paralisar.

Não sejamos cínicos. Façamos o melhor de nós, usemos outras estratégias para nos mantermos vivos. E não precisamos de armas para esconder nossa covardia, para sermos covardes.

Terminei meu doutoramento em Ecologia em 2002, estudando ilhas artificiais no lago da hidroelétrica de Serra da Mesa, quando me aproximei da Fundação Grupo O Boticário, que financiou parte do meu projeto. Entre 2002 e 2006 fui trabalhar na Coordenação de Criação da Diretoria de Ecossistemas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), onde pude acompanhar e desenvolver estudos que culminaram na criação ou ampliação de dezenas de unidades de conservação de proteção integral, especialmente no Cerrado e na Amazônia. Em 2006 passei a atuar como professor adjunto da Universidade de Brasília onde coordeno o Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação e desenvolvo minhas pesquisas, onde o conforto dos sentimentos da minha infância são nutridos pelos meus anos de estudo.

Escrevo com menor frequência que deveria para alguns canais de mídia. Sou colunista do O Eco desde 2008 e faço parte da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza da Fundação Grupo O Boticário.

Reuber Brandão é professor da Universidade de Brasília - UnB, com ampla experiência,  faz parte do Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação - LAFUC (www.lafuc.com) e coordena a Lista dos Anfíbios do Distrito Federal (www.lafuc.com/espcies-do-df)

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Comentários

Barbara disse…
Que interessante (e apropriado) ler um texto sobre "cinismo" nesse momento, Reuber. E parabéns pela sua trajetória!
Reuber disse…
Obrigado Bárbara

Reuber disse…
Obrigado Nathália! Boa travessia!
Nathalie Citeli disse…
Grande texto e grande cientista. Você inspira seus alunos.
Igor Gonçalves disse…
Texto muito bom, que compartilha temores e esperança de quem deseja construir uma outra relação entre a sociedade humana e a natureza.
Professor Reuber sempre muito inspirador, não tive aulas mas a oportunidade de algumas conversas e palestras dentro do movimento que o CEMA fazia na UnB.
Inspirador. O medo estará aí, mas seguiremos outro caminho e dentro das nossas limitações iremos encontrar outras pessoas que sonharão, compartilharão e realizarão atividades juntos, rumo à outras perspectivas.

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Projeto Vida de Tamanduá (Myrmecophaga tridactyla).