Sobrevivendo aos ambientes urbanos
Olhando para um bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) que pousa no telhado do meu prédio, acho seu canto um pouco estranho. “Esse bicho parece que está engasgado, será que é um jovem?” Pode ser, mas algo ainda mais interessante pode estar acontecendo: o animal pode alterar o seu canto para conseguir se comunicar dentro das cidades. Vou tentar contar um pouco essa história...
Sempre que leio sobre algum tema costumo voltar um pouco ao passado. Algo mudou? O que mudou? Agora que estamos passando por uma pandemia, por exemplo, tenho a curiosidade de saber se já passamos por outras pandemias e como lidamos com elas. Com isso descobri que na última pandemia que a espécie humana passou - gripe espanhola de 1918 - foi um show de horrores. Para simplificar, de forma nenhuma lidamos melhor do que agora, passando pela pandemia do COVID-19 (apesar do governo brasileiro se esforçar ao máximo para superar todas as expectativas de piorar a situação de sua população). Na época não tínhamos descoberto a estrutura genética básica, o DNA e o RNA, de primordial importância para a criação das vacinas que combatem os vírus (hoje tudo isso é ensinado no ensino básico). Parafraseando a jornalista Gina Kolata, antes do século XX a humanidade é marcada pela perda da batalha com as doenças. Não estou dizendo que está ideal, mas olhar para o passado faz com que enfrentemos melhor o presente e repensemos o que queremos para o futuro. Fico na janela escutando o canto estranho do bem-te-vi e pensando como demoramos para prestar atenção nos animais que vivem nos ambientes urbanos…
Uma forma de entender o tamanho da alteração é olhar os dados durante a pandemia do COVID-19, que parou o mundo. Isso alterou, por exemplo, toda a dinâmica sísmica do planeta. Os animais começaram a aparecer em locais impensáveis e viraram notícia ao redor do mundo. Apenas esses exemplos mais simples já nos chamam atenção. Entretanto, existem outras formas que são mais sistemáticas e críticas, feitas pelos cientistas. Os resultados têm mostrado indícios de que os animais que vivem nas cidades estão alterando sua biologia. O tamanho dos crânios de duas espécies de roedores americanos (Peromyscus leucopus e Microtus pennsylvanicus), aumentaram nos últimos 100 anos (tamanho do crânio está relacionado à capacidade cognitiva). Aves nas cidades estão vivendo menos e mudando sua alimentação devido a disponibilidade de alimentos distintos e de pior qualidade nutricional. Isso é importante pois pode, no futuro, mudar o formato do bico dos animais (processo bem conhecido entre os biólogos, com seu maior exemplo com os tentilhões de Darwin nas ilhas Galápagos) devido a sobreposição alimentar maior nos ambientes urbanos, ou seja, a alimentação está mais parecida. Veja a ave que pousa na sua janela e repare as diferenças em seus bicos. Um canário-da-terra tem um bico grosso com capacidade de quebrar e manipular sementes, diferente do bico dos sanhaços que são aves frugívoras (veja alguns exemplos dos bicos das aves e suas funções aqui - claro que tudo é muito mais complexo, mas acredito que deu para entender). Esses formatos foram moldados ao longo da história evolutiva das espécies através de adaptações cumulativas (um tópico para textos futuros). Essas alterações não estão restritas às aves. Caracóis terrestres estão mudando sua coloração provavelmente devido à alteração luminosa das cidades e uma espécie de pulga d'água (Daphnia magna) mudou suas características em resposta à diferença de temperatura das áreas urbanas. Ainda, temos o exemplo clássico das mariposas-salpicadas (Biston betularia) que mudaram sua coloração em pouquíssimo tempo em resposta a cobertura de fuligem industrial depositada nas árvores. Após todos esses exemplos, espero ter conseguido mostrar meu ponto: nossa história de ocupação do globo, com todo o desenvolvimento tecnológico, impacta os outros organismos vivos, inclusive nas cidades!
Retorno ao bem-te-vi e agora posso abordar um aspecto dos ambientes urbanos que conhecemos muito bem: o aumento do ruído (barulho). O aumento do barulho na cidade está, muito provavelmente, impactando a comunicação dos animais. Imagine você em algum centro urbano na hora de pico do trânsito tentando conversar com a pessoa ao seu lado. Agora tente falar com a pessoa do outro lado da rua. É praticamente impossível! Como crescemos nesse ambiente não reparamos em todo o caos, apesar de sermos impactados. Um amigo que tinha por rotina aumentar o volume da televisão cada vez que o avião passava em cima de sua casa, por exemplo, me relatou recentemente o estranhamento após a redução dos voos diários devido a pandemia. Quando eu trabalhava com o manejo de fauna no Aeroporto de Brasília tinha por costume tapar os ouvidos inconscientemente a cada dois minutos (mais ou menos o tempo entre uma decolagem e outra no horário de pico). Assim como os humanos, que se adequam ao ambiente para conseguir se comunicar, os animais também estão se adaptando. De fato, aves próximas a aeroportos estão sofrendo alteração em seus cantos e o barulho das aeronaves está determinando quais são as espécies tolerantes a todo esse estresse, alterando a estruturação das comunidades de aves locais.
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