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Não existem advogados de defesa para a fauna selvagem

Eduardo Guimarães


Capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) - Eduardo Guimarães Santos

Uma pessoa mordida no Distrito Federal levantou, novamente, o perigo que as capivaras podem oferecer às pessoas. Mas será que esses animais são realmente perigosos? Como podemos avaliar o perigo e entender os conflitos? Essas reflexões são importantes e, no caso de tomadores de decisões, defendo que devem ser feitas com base estritamente científica. Assim, chego ao triste entendimento que trago no título deste texto: Não existem advogados de defesa para a fauna selvagem. Vem comigo e vamos aprofundar mais no assunto.
 
Conflitos entre a fauna selvagem e os humanos
Quando penso em problemas decorrentes da fauna selvagem com os humanos, imediatamente vem à minha cabeça mortes de pessoas. Veja, por exemplo, os 247 registros de mordidas de aligatores em pessoas na Flórida entre os anos de 1948-2014, principalmente envolvendo turistas (quando viajar para algum lugar, é interessante perguntar para os moradores se é seguro antes de se jogar em um lago!); ou os 165 ferimentos infligidos por ursos na América do Norte entre 1900-1979; ou mesmo o número de registros de envenenamento de pessoas por serpentes, que podem deixar sequelas e até levar à morte (todos devem lembrar do homem mordido por uma naja traficada e que quase levou à sua morte - mas esse assunto merece um texto próprio pois envolve outro aspecto relevante que é o tráfico de animais selvagens). Claro que esses exemplos são extremos e não representam a maior parte dos conflitos que observamos no dia a dia. Na verdade, como quase tudo na biologia, existe um gradiente. Para citar um meio termo, podemos pensar na predação de animais domésticos pelos leopardos na Índia, que adentram na cidade em busca de alimento. Ou seja, o problema pode ir de extremamente grave (morte ou ferimento de uma pessoa) a um nível de incômodo pequeno para a maior parte dos humanos (um canto de uma sabiá durante a madrugada acordando as pessoas).

A maior parte dos conflitos envolvem interações que, na minha opinião, são de menor relevância e decorrem do descolamento que as pessoas têm do convívio com a natureza. Veja, por exemplo, o caso das andorinhas aqui em Brasília, que foi parar na polícia. Em resumo: as andorinhas utilizavam o forro do prédio para reprodução e estavam gerando incômodo aos moradores (não me perguntem o motivo) e levou o condomínio a direcionar dinheiro para tapar os buracos. Apesar de nem todo relato ir parar nas manchetes dos jornais, esses tipos de interações são recorrentes. Como trabalho com o tema, acabo recebendo alguns relatos ou mesmo pedidos de ajuda. Vou compartilhar quatro casos que chegaram a mim nos últimos anos, pois é importante para entender o contexto do assunto e justificar o que levantei acima do descolamento das pessoas com a fauna selvagem.


Animais envolvidos em conflitos em Brasília/DF - Fotos: 1) Morgana Maria Arcanjo; 2) Eduardo Guimarães Santos; 3) Eduardo Guimarães Santos; 4) Márcia Moema de Carvalho.
  1. Sabiá-do-campo (Mimus saturninus): Uma amiga entrou em contato informando um problema ocorrido em um condomínio aqui em Brasília: tinha uma passarinho atacando as pessoas que passavam em um local do condomínio e estava gerando transtorno e raiva nos moradores. Ao ver a foto do animal, imediatamente o identifiquei e, como já tinha visto o comportamento e já tinha inclusive sido atacado pela mesma espécie, sabia que o comportamento era normal. O animal estava protegendo seus filhotes. Sugeri o isolamento do ambiente por alguns dias, até o final do período reprodutivo do animal, mas não sei se foi seguido.
  2. Coruja-buraqueira (Athene cunicularia): Um amigo me procurou por causa do desespero de um outro amigo. O problema: tinha uma coruja insuportável que ficava em seu muro e, consequentemente, defecava em seu quintal. Dei uma risada sincera ao ouvir o relato pelo desespero do morador. Poxa, se não quiser lavar o quintal more em um kitnet. Claro que eu expliquei a importância da coruja para o controle de pragas, pois é uma predadora de vários insetos, inclusive preda escorpiões. Nunca recebi retorno sobre o que realmente foi feito. Conhecendo um pouco como as pessoas agem, não acho que houve entendimento e aceitação.
  3. Saruê (Didelphis albiventris): Uma amiga entrou em contato perguntando o que fazer com um gambá. Segundo o relato, os moradores queriam matar o animal, pois estava comendo o lixo. Fui ao local onde estava o animal (dentro de uma caixa) e tentei conversar e explicar a importância da espécie, como é uma espécie nativa e não poderia matar ou retirar. O homem olhou pra mim e respondeu: “ok, se voltar eu mato”, e deu uma risadinha. Continuei tentando explicar que seria interessante ele guardar o lixo de forma adequada e, dessa forma, não teria problema com o animal. Não adiantou. Andei para trás dos prédios e soltei o animal, era o que eu poderia fazer.
  4. Sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris): Uma amiga, recentemente, relatou que não está conseguindo dormir por causa de uma sabiá que não para de cantar de madrugada na sua janela. De fato, durante o período reprodutivo, os animais aumentam sua atividade e alguns mudam o horário de atividade (ainda é discutido os motivos disso). Nesse caso, sua falta de sono não foi suficiente para pensar em matar o animal. Mas claro que se tratava de uma ecóloga com amplo conhecimento da importância da biodiversidade. Neste caso, protetores auriculares anti-ruído seriam uma ótima alternativa!
Pode parecer que eu saí do tema principal, mas não. Todos esses exemplos são importantes para contextualizar o leitor sobre o assunto mais amplo: para um convívio seguro, nós precisamos ver o lado dos animais. A maior parte das aves, por exemplo, começa agora seu período reprodutivo que se estenderá até o final das chuvas. Inclusive, muitas espécies migratórias aparecem nesse período em várias regiões. A biodiversidade nos presta muitos serviços importantes (manutenção de água, controle de pragas, bem-estar, etc.) e deve ser respeitada. Como disse, a maior parte dos conflitos são pequenos e podem ser superados com um pouco de entendimento e respeito às espécies. Afinal, tem alguém que não aprecie o canto de uma sabiá-laranjeira? (espécie do meu quarto exemplo acima) É tão apreciado que é uma espécie muito comum entre os criadores de animais em cativeiro. Enfim, vamos voltar às capivaras...

Quem são as capivaras e quais os conflitos relatados pelas pessoas?
Capivaras são uns dos maiores mamíferos da fauna brasileira, e ao longo da sua distribuição, recebe nomes diferentes como carpincho, cupido ou cubu. É o maior roedor vivo, podendo chegar a 135 cm de comprimento, 62 cm de altura e o peso de 65 kg. Tem uma ampla distribuição geográfica que engloba boa parte da América do Sul e pega todo o Brasil. É uma espécie semi aquática, ou seja, é vista sempre nas proximidades de rios e lagos, e podem formar grandes grupos. Em outros países tem, inclusive, importância econômica, devido ao apreço por sua carne. No Brasil, a caça do animal é tido como um dos fatores que impactam a espécie, sendo considerada, por exemplo, mais rara nas regiões Nordeste devido a caça para consumo, uso da gordura e do couro. Vale pontuar que o resto do mundo admira nossas capivaras. Recintos construídos especificamente para as capivaras são vistos, por exemplo, nos zoológicos de Toronto, San Diego, Palm Beach e Dortmund (figuras abaixo).

Recinto para capivaras do Zoológico de Dortmund - Alemanha / Fotos: Igor Oliveira Braga de Morais


O gradiente de conflito que relato no início do texto pode ser visto dentro de uma só espécie. Com a capivara, por exemplo, pode ir de um extremo de risco, como um ataque ou a transmissão de uma doença até problemas mais brandos como o incômodo decorrente da presença das fezes dos animais nos quintais das pessoas. Devido a essa diversidade de conflitos, acredito que esse tópico merece um texto separado. Inclusive, prefiro deixar para redigir esse texto depois e trazer informações com base em dados, tendo em vista que está em andamento um projeto com objetivo de monitorar as capivaras aqui em Brasília. Quero apenas discorrer sobre os ataques, já que estão em voga na mídia Brasiliense enquanto escrevo.

Aqui em Brasília duas notícias assustaram os moradores e, principalmente, as pessoas que costumam frequentar o Lago Paranoá. A primeira foi noticiada em fevereiro e trazia a manchete “Capivara ataca homem que fazia exercícios no Lago Paranoá, em Brasília”. No momento que vi a reportagem achei muito estranho. Já trabalhei com capivaras e por muitas vezes tive que capturar os animais, na época que trabalhava no Zoológico. Lendo apenas a chamada da matéria imediatamente vem a impressão de um animal agressivo. Posso afirmar com tranquilidade que as capivaras são bem tranquilas. Na verdade, quem já tentou se aproximar dos bando nota que os animais vocalizam e todos pulam na água. É um comportamento de defesa (fugir de qualquer risco). Entretanto, sabemos que o relato é real e o homem ficou ferido. Então, o que aconteceu? Sinceramente eu não sei. O único comentário que posso fazer é que esse evento é atípico. Deve ser apurado e investigado para que não se repita. O segundo relato ocorreu alguns meses depois, em setembro, e trazia um título mais honesto: “marinheiro é mordido por capivara no Lago Paranoá, em Brasília”. O vídeo é estranho, cortado e sem som, mas mostra o homem mergulhando e encontrando uma capivara que o ataca. A capivara olhou o homem e foi ao seu encontro para atacá-lo? Baseado no que sabemos sobre a espécie, não faz sentido. Na minha cabeça parece que realmente foi um encontro infortuno, o animal se assusta, morde o homem e vai embora. Entretanto, o ataque aconteceu e devemos entender o contexto para que nunca mais se repita com nenhuma pessoa. O entendimento do contexto traz a complexidade necessária para a resolução dos problemas.

O erro em tratar assuntos complexos de forma simples
Atualmente, estamos passando por uma pandemia que abalou todo o mundo. Quero acreditar que, após quase dois anos de pandemia e cerca de 550 mil mortos no Brasil (até o momento que escrevo), todos os cidadãos entendem a importância do método científico (veja aqui uma explicação simples sobre o método). Da mesma forma, quando pensamos em conflitos entre humanos e animais selvagens, devemos ter em mente a necessidade de tratar o assunto baseado em dados e acúmulo de conhecimento científico.

Já ouviu falar da doença de Lyme? Eu trago esta doença por se assemelhar ao caso das capivaras, pois também se trata de uma bactéria carregada por um carrapato. Claro que tem suas diferenças (inclusive geográficas), mas faço uma comparação apenas para entendermos o problema de simplificar assuntos ecológicos complexos.

A doença de Lyme acometeu, em média, 20 mil pessoas por ano nos Estados Unidos nos últimos 10 anos. Acomete também milhares de pessoas na Europa e na Ásia e o entendimento sobre sua dinâmica parece que ainda não está esclarecido, sendo debatido amplamente pelos cientistas. O importante para nossa discussão é que a doença de Lyme foi associada a um carrapato chamado de Ixodes scapularis, que era encontrado comumente em veados. Essa associação transformou o carrapato no “carrapato do veado”. Então o raciocínio subsequente foi: para reduzir os casos da doença de Lyme em humanos precisamos reduzir o número de carrapatos. Como o número de carrapatos é relacionado ao número de veados (tendo em vista que o carrapato é o “carrapato do veado”), se matarmos os veados reduzimos os números de carrapatos e, consequentemente, o número casos de doença de Lyme. Claro que essa associação clara entre o carrapato e os veados era errada e simplista. Só para deixar claro, o veado associado ao carrapato, conhecido cientificamente como Odocoileus virginianus, não ocorre na Europa e Ásia. Só pela distribuição geográfica do animal já era possível perceber que essa associação direta e simplista não fazia sentido. O fato é que os cientistas lutam até hoje para desfazer esse tipo de engano e sabe-se que muitos veados foram mortos pelo medo da doença de Lyme. Achou que é loucura? Posso te falar que tal associação está sendo feita agora com as capivaras e a febre maculosa, por causa dos carrapatos que acometem esses animais. Entretanto, tal associação é absurda, pois os carrapatos não ocorrem apenas nas capivaras. Inclusive, aqui em Brasília, apesar de não existir nenhum caso confirmado de febre maculosa (que é monitorado de perto pelos órgãos responsáveis), é corriqueiro o recebimento e divulgação de tal informação pelas mídias sociais. Nada disso impede a associação feita e todos os problemas que acarretam. Então, por que essa insistência de uma visão simplista? Como esse tipo de ideia ajuda a resolver os conflitos? A quem interessa? Se quisermos resolver os conflitos, a ignorância tem que ser superada!

Por que quando temos algum incômodo com a fauna o nosso primeiro ato é pensar no afastamento? “Tem um passarinho que pousa no meu muro e está sujando o chão, vou colocar vidro ou matar o animal”, “Uma sabiá está me acordando de madrugada, vou colocar uma armadilha e me livrar dela”, “uma capivara entrou no meu quintal, vou soltar os cachorros nela”. Acredite, para quem trabalha com o tema é comum escutar esse tipo de opinião. Afinal, por que temos tanta dificuldade em lidar com o problema de forma mais racional? Como colocado pelo jornalista David Quammen ao relatar a tentativa de manejo com a doença de Lyme nos Estados Unidos: “Tratava-se de um sistema ecológico com a complexidade do xadrez, não com a clareza de um jogo de damas”. Ou seja, não podemos tratar problemas complexos com soluções simplistas. Já devíamos ter aprendido isso! Ainda, nós somos os mais interessados nos serviços que a biodiversidade proporciona. Talvez o passo que esteja faltando é olhar o problema de forma coletiva e não individual.

O professor Christian Dunker, ao tentar entender a construção do Brasil moderno e suas relações sociais, formula em seu livro a lógica do condomínio. O condomínio em sua discussão é a realização de um ideal baseado na construção e isolamento por muros (representando a segurança). Assim, constrói-se um muro de defesa, onde dentro do muro só tenho iguais aos meus e me isolo do resto da sociedade, o que gera mais isolamento e conflito. Consigo facilmente fazer uma analogia com a ideia abordada pelo professor direcionada ao manejo da fauna silvestre em conflito com os humanos. Estamos tentando resolver os problemas com o isolamento (muro, cercas, extermínio de quem entra no meu terreno). Isso gera mais isolamento e conflitos. Recentemente, por exemplo, em uma discussão de gestores e técnicos sobre o manejo de capivaras no Distrito Federal, houve um comentário bem direto: “No Alphaville, em São Paulo, tínhamos problemas com as capivaras. Cercamos o lago e isso resolveu o problema”. Não sei se essa foi exatamente a fala, pois eu não anotei na hora. Entretanto, a ideia principal está expressa. Se o animal me incomoda, eu barro o acesso e resolvo o problema. Veja bem, tenho que pontuar que eram gestores e técnicos discutindo um problema sério. O que me faz pensar: o problema foi mesmo resolvido? Afinal, para onde foram essas capivaras que utilizavam o local? Qual o impacto de tal atitude para os animais? Não estou julgando a atitude, pois nem conheço os envolvidos, estou apenas pontuando que soluções simplistas não devem, na atualidade, ser aceitas. Já acumulamos conhecimento científico suficiente para sermos mais racionais e responsáveis. Parece que ainda não aprendemos a conviver com a fauna de forma saudável e continuamos a reproduzir atitudes antigas. Enquanto o mundo discute a importância da biodiversidade, o brasileiro quer exterminar capivaras, com a ilusão que vai resolver o problema. Não aprendemos nada com a Pandemia da covid-19? Apesar de aparentemente não termos aprendido nada com a pandemia de 1918 (como mostrado de forma clara pelas professoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling), sigo acreditando que, dessa vez, vai ser diferente...

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